José de Sousa, em seu bilhete de identidade informal, conta que talvez tenha sido um dos primeiros casos em que o filho dá nome ao pai: Saramago não é de família, era apenas alcunha e acabou adotado pelo pai depois de ser colocado em José por um ousado funcionário da Conservatória do Registro Civil da Golegã, em Portugal. E é como um ‘bilhete de identidade informal’, não só seu, mas também de Pilar del Río, sua companheira, que o livro José e Pilar pode ser lido.
Reunindo as entrevistas que deram origem ao documentário de Miguel Gonçalves Mendes (2010), a grande novidade do livro é trazer algumas conversas inéditas, que não foram parar no produto final. Prefaciado por Valter Hugo Mãe, a obra não é nova — foi publicada em 2012, dois anos após o filme. Estava em minha estante há um bom tempo, esperando para ser lido justamente pela razão de que teria sido lido de imediato.
Explico: cartas e conversas são, para mim, uma enorme tentação. Pode ser que um pouco de minha curiosidade jornalística se converta em bisbilhotices, mas a verdade é que eu acho que só é possível conhecer de fato um autor quando você se vale de outros meios que não as suas obras. Facetas, pois — diria José Saramago.
Dada a colocar atenção em sincronias — coisa que fariam José e Pilar rirem de mim –, o dia em que termino o livro marca justamente um mês para os sete anos de morte de Saramago (18 de junho de 2010) e, curiosamente, é o mesmo em que vi o documentário anos atrás (a ferramenta de lembranças do Facebook tem a sua utilidade).
A divisão adotada no livro é outro adicional. Com ‘capítulos’ intercalados dedicados a cada um, é possível visualizar claramente em quais pontos os dois se aproximam e se distanciam. Apesar de Pilar colocar-se como a jornalista e tradutora que ajudou a ‘organizar’ a vida de Saramago — e sua carreira tardia –, é interessante como o livro nos permite ver um pouco mais de Pilar.
“Participamos da mesma forma de estar no mundo” é o que ela diz a respeito das semelhanças e diferenças dos dois. Acredito que esta frase sintetize, concordando com Pilar, a relação dos dois. Sem pretensões, as conversas com o diretor Miguel Gonçalves Mendes evidenciam uma confluência de opiniões acerca de variados assuntos: José, sereno, e Pilar, veemente, veem da mesma forma a nocividade das relações familiares, o amor, o mundo, a religião, os papéis cívicos e políticos dos jornalistas e dos escritores, a cultura e a morte. Ou seja, eles de fato partilham, participam e estão* no mundo juntos. Este seria um dos maiores ideais no amor — até para os dois, tão críticos e avessos à eternidade ou ao destino. (É de se entender, claro: encontraram-se quando muito já haviam caminhado pela vida. Ainda assim, para eles, não haveria amor ou vida maior se separados.)
Este mesmo estar no mundo é a primeira lição que tiro de José e de Pilar. Compartilho abaixo outros nove aprendizados desta conversa que travamos os quatro:
2. Momento-chave, por José: Se há um momento na minha vida que é um momento-chave é esse, o momento da decisão: é agora ou nunca que eu vou saber finalmente se sou escritor ou se não sou escritor. E tinha sessenta anos, meu caro.
José Saramago recebeu o Prêmio Nobel de Literatura aos 76 anos. Longe do círculo de intelectuais portugueses, até aquele momento sempre fora tratado com desconfiança e ceticismo — assunto longamente abordado pelos dois em muitas entrevistas. Quando resolveu escrever, Saramago encontrava-se desempregado. Foi para o Alentejo, para uma unidade coletiva de produção e saiu com um romance. É um dos maiores escritores portugueses.
3. Família, por Pilar: A família é um grupo social. (…) É o grupo social mais perverso que pode haver para o indivíduo. É constituído e passa a existir e nós o mantemos. E eu citava o exemplo de [Bernardo] Bertolucci, que dizia que a primeira mentira que os seres humanos dizem é justamente por culpa da família, o primeiro fingimento, a primeira hipocrisia… Aprendemos a ter uma vida dupla e a sermos diferentes do que queremos ser (…).
4. Respeito e amor, por José: Somos muito respeitadores de cada um de nós em relação ao outro. Isso não quer dizer que não se aprenda com o outro, que não se transmita ao outro algo daquilo que é nosso, e não quer dizer que isso que se transmite não seja incorporado no outro. Pois se eu leio hoje um livro e se esse livro influi em mim, como é que não há de influir a pessoa com quem eu vivo um ano, dois, três, quatro, cinco, dez anos? Mas nem eu me converto no livro nem me converto na outra pessoa. (…) Interpenetramos a toda a hora.
5. Raízes e o mundo, por Pilar: Às vezes se criam raízes, mas onde eu estiver levarei sempre umas tesouras para cortar as raízes. As raízes… cada um vive no lugar onde está neste momento, e as raízes deste dia são cada dia, não estar apegado aos lugares. O mundo é muito grande para apegar-se só e exclusivamente a um lugar.
• Ignorei a morte de Saramago ao escrever este texto, pois ela foi completamente esquecida no decorrer da leitura. Bem, é como se ele seguisse vivo, não? (Mais um comentário para o qual ele balançaria a cabecinha.)
| texto publicado em: Coletivo We Love, maio de 2017
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